SUPREMO ENLEVO


Quanta mulher no teu passado, quanta!

Tanta sombra em redor! Mas que me importa?

Se delas veio o sonho que conforta,

A sua vida foi três vezes santa!

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Erva do chão que a mão de Deus levanta,

Folhas murchas de rojo à tua porta…

Quando eu for uma pobre coisa morta,

Quanta mulher ainda! Quanta! Quanta!

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Mas eu sou a manhã: apago estrelas!

Hás-de ver-me, beijar-me em todas elas,

Mesmo na boca da que for mais linda!

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E quando a derradeira, enfim, vier,

Nesse corpo vibrante de mulher

Será o meu que hás-de encontrar ainda...

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Florbela Espanca

A Nossa Casa

A NOSSA CASA

A nossa casa, Amor, a nossa casa!

Onde está ela, Amor, que não a vejo?

Na minha doida fantasia em brasa

Constrói-a, num instante, o meu desejo!

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Onde está ela, Amor, a nossa casa,

O bem que neste mundo mais invejo?

O bando ninho aonde o nossa beijo

Será mais puro e doce que uma asa?

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Sonho… que eu e tu, dois pobrezinhos,

Andamos de mãos dadas, nos caminhos

Duma terra de rosas, num jardim,

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Num país de ilusão que nunca vi…

E que eu moro – tão bom! – dentro de ti

E tu, ó meu Amor, dentro de mim…

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Florbela Espanca

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FF.

AMIGA

Deixa-me ser a tua amiga, Amor,

A tua amiga só, já que não queres

Que pelo teu amor seja a melhor,

A mais triste de todas as mulheres.

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Que só, de ti, me venha mágoa e dor

O que me importa a mim?! O que quiseres

É sempre um sonho bom! Seja o que for,

Bendito sejas tu por mo dizeres!

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Beija-me as mãos, Amor, devagarinho…

Como se os dois nascêssemos irmãos,

Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho…

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Beija-me bem! … Que fantasia louca

Guardar assim, fechados, nestas mãos,

Os beijos que sonhei prá minha boca! …


Florbela Espanca

DESEJOS VÃOS

Eu queria ser o Mar de altivo porte

Que ri e canta a vastidão imensa!

Eu queria ser a pedra que não pensa,

A pedra do caminho rude e forte!

Eu queria ser o Sol, a luz imensa,

O bom do que é humilde e não tem sorte!

Eu queria ser a árvore tosca e densa

Que ri do mundo vão e até da morte!

Mas o Mar também chora de tristeza…

As árvores também, como quem reza,

Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!

E o Sol altivo e forte, ao fim de um dia,

Tem lágrimas de sangue na agonia!

E as pedras… essas… pisa-as toda a gente! …



Florbela Espanca

Os Meus Versos

OS MEUS VERSOS

Rasga esses versos que eu te fiz, Amor!

Deita-os ao nada, ao pó, ao esquecimento,

Que a cinza os cubra, que os arraste o vento,

Que a tempestade os leve aonde for!



Rasga-os na mente, se os souberes de cor,

Que volte ao nada o nada de um momento!

Julguei-me grande pelo sentimento,

E pelo orgulho ainda sou maior!...



Tanto verso já disse o que eu sonhei!

Tantos penaram já o que eu penei!

Asas que passam, todo o mundo as sente...



Rasga os meus versos... Pobre endoidecida!

Como se um grande amor cá nesta vida

Não fosse o mesmo amor de toda a gente!...



Floberla Espanca

EU (Florbela Espanca)

Até agora eu não me conhecia.
Julgava que era Eu e eu não era
Aquela que em meus versos descrevera
Tão clara como a fonte e como o dia.


Mas que eu não era eu não o sabia
E, mesmo que o soubesse, não o dissera...
Olhos fitos em rutila quimera
Andava atrás de mim... e não me via!


Andava a procurar-me - pobre louca! -
E achei o meu olhar no teu olhar,
E a minha boca sobre a tua boca!


E esta ânsia de viver, que nada acalma,
É a chama da tua alma a esbracejar
As apagadas cinzas da minha alma!


Florbela Espanca

REALIDADE

Em ti o meu olhar fez-se alvorada

E a minha voz fez-se gorjeio de ninho...

E a minha rubra boca apaixonada

Teve a frescura pálida do linho...

Embriagou-me o teu beijo como um vinho

Fulvo de Espanha, em taça cinzelada...

E a minha cabeleira desatada

Pôs a teus pés a sombra de um caminho...

Minhas pálpebras são cor de verbena,

Eu tenho os olhos garços, sou morena,

E para te encontrar foi que eu nasci...

Tens sido vida fora o meu desejo

E agora, que te falo, que te vejo,

Não sei se te encontrei... se te perdi...


Florbela Espanca

Alma Perdida (Florbela)

ALMA PERDIDA



Toda esta noite o rouxinol chorou,

Gemeu, rezou, gritou perdidamente!

Alma de rouxinol, alma de gente,

Tu és, talvez, alguém que se finou!



Tu és talvez, um sonho que passou,

Que se fundiu na Dor, suavemente...

Talvez sejas a alma, a alma doente

Dalguém que quis amar e nunca amou!



Toda a noite choraste... e eu chorei

Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei

Que ninguém é mais triste do que nós!



Contaste tanta coisa à noite calma,

Que eu pensei que tu eras a minh'alma

Que chorasse perdida em tua voz!


Florbela Espanca